Acordou de repente. Virou para o lado, acendeu o abajur e olhou com certa dificuldade para o velho despertador que marcava três horas e alguns segundos.
Deu uma esticada nas pernas, respirou fundo, fechou os olhos novamente e percebeu que o barulho que vinha pela janela indicava que as previsões do dia anterior estavam corretas.
Apesar do silêncio parecia ouvir murmúrios estranhos. Um som que incomodava. Resolveu levantar. Não conseguiria relaxar com aquela dúvida de algo, talvez, ligado em algum lugar da casa.
Caminhou com certa dificuldade pelo estreito corredor em direção da cozinha. Tinha o hábito de andar no escuro deste criança. Conhecia cada palmo daquela casa. Cada cômodo. Gostava daquele ambiente calmo e sossegado da madrugada.
Sorveu um copo d’água como se o tempo não existisse e uma corrente fria desceu pela coluna. Percebeu que não estava sozinho. Algo mais o acompanhava e estava bem ali ao seu lado.
O calafrio veio acompanhado de um temor tal que as pernas fraquejaram. Longe da ousadia, ficou imóvel e falou baixinho torcendo pelo engano.
– Tem alguém aí?
Silêncio. Sentiu uma respiração fria e lenta muito próxima da nuca. Colocou as mãos no balcão da pia em busca de segurança e olhou em volta. Não havia nada. Nenhum movimento. Apenas escuridão.
– Eu estou velho! Enxergando pouco e ouvindo demais – resmungou em voz baixa. E com uma leve brisa um sussurro ecoou de algum lugar da cozinha.
– Você não está sozinho. Você nunca esteve sozinho.
Incomodado, levantou o tom de voz:
– Quem está aí?
Tentou se virar e uma força estranha segurou seus braços e pernas.
– Não tente me enxergar. Você não pode. Ainda não chegou a hora. O báratro habita teus olhos. Não se vire e escute: você tem o tempo de um dia para corrigir o caminho e curar teu coração.
– E quando é isso? Sou um homem velho, sozinho e doente.
Não houve resposta.
Uma paz desceu sobre ele. Soltou as mãos trêmulas da pia, perdeu o chão e caiu.
De joelhos com o dorso inclinado para a frente chorou o choro dos arrependidos, dos miseráveis. O choro do perdão.
Tudo que havia desejado nos últimos anos estava perto de acontecer. Pior do que a solidão forçada só a morte.
Sabia que a indiferença, o individualismo, a incompreensão estavam cobrando seu preço.
Tudo que deixou de ser durante a vida toda estava ali dobrado em um corpo frágil e debilitado.
Acordou sentindo frio. Estava em sua cama. Abriu os olhos e tentou lembrar das últimas horas.
Nada revelava. Sua mente estava confusa. Foi sonho ou realidade? Nenhuma resposta. A incerteza marcava território.
Seguiu lento a rotina de todos os dias. A leitura no final da tarde na velha poltrona estrategicamente diante da janela da sala.
– Preciso cortar a grama. Faz tempo que não cuido do jardim.
Deu uma olhada em volta. Tudo estava limpo e no seu devido lugar.
Recordou os dias de festas. A casa cheia. Os jantares em família. Crianças correndo. Gritos. Risos. Alegrias. Presentes e lágrimas de felicidades.
Num suspiro longo a imagem da amada eterna. Mãe de seus filhos.
– A idade incomoda – pensou.
– Aqueles lençóis brancos! – Não entendia o sentido daquilo.
Resolveu deitar cedo. Estava cansado. Fez tudo que deveria ter feito e estava feliz.
Lembrou com um leve sorriso de satisfação que tinha deixado tudo no seu devido lugar.
O testamento na gaveta do bidê. Aquele que tudo mundo procurava e ninguém encontrava.
E na estante, sobre Os Lusíadas, a carta para a filha mais velha que escreveu e nunca entregou.
Sentia paz e sossego. O corpo leve, sem dores e uma calma jamais sentida antes.
Queria dormir. Respirou fundo como tentando libertar o que ainda restava de ruim naquele corpo doente dos males da vida.
Restou uma luz fraca iluminando o ambiente e um silêncio quebrado no balanço inconfundível de um velho despertador insistindo em trazer de volta um tempo que não volta mais.