Recebi uma mensagem de um amigo que conheci pelas ruas desta cidade.
Era um homem inteligente e bem humorado, apesar da vida difícil que levava.
Nunca saiu daqui. Mas era um sujeito atualizado e bem informado.
O texto, na verdade, é endereçado à municipalidade.
Ei-lo:
Sábado é um bom dia para morrer. Ainda mais chuvoso e frio. Foi assim que aconteceu comigo.
Morrer sempre foi um desafio. Uma curiosidade que me assombrava.
Pensava que bastaria fechar os olhos e abandonar uma carcaça pálida cheia de males, dores e normas e seguir em frente.
Mas descobri que não é bem assim.
Morri relativamente jovem, mas em tempo de deixar minha pequena família amparada.
Não deixei fortuna. Sempre fui pobre. Levei comigo o carinho de alguns amigos e não a ganância e a praga dos parentes.
Sai da vida como entrei: pelado, careca e sem tostão.
Por que alguns nascem com tanto e a maioria nasce sem nada?
Desde cedo condenei meus pais pela insanidade de colocarem neste mundo louco um inocente para sofrer o infortúnio de existir.
Que mal fez o homem para nascer e sofrer tanto, meu amigo?
Poderia ter nascido na Dinamarca ou na Suécia, mas quis Deus, por pura sacanagem, que eu nascesse nesta cidade em um bairro miserável cercado de gente preguiçosa, cheia de vícios e mentiras.
Aos 15 anos já dividia o tempo entre uma escola pública ruim e um trabalho de poucas horas em um restaurante.
O pouco que ganhava tinha destino certo: o bolso de minha mãe.
Nunca deu para comprar um carro ou roupas da moda, comuns a todo adolescente, mas tive várias oportunidades de entrar em gangues que transitavam entre pequenos delitos, tráfico de drogas e até prostituição.
Apesar do bom dinheiro, perseverei. Não pela minha família, mas pela minha integridade física e moral.
Estamos condenados ao mal e ao sofrimento permanente, acredite.
E resistir é um sacrifício pesado demais, meu velho.
Não fiz faculdade. Parei uma escala antes. Sabia ler e escrever e para o mundo em que eu vivia era mais do que suficiente.
Trabalhar foi minha única opção. A perspectiva era sobreviver.
Que critério é esse que privilegia alguns e condena a maioria?
Meu pai dizia que eu devia trabalhar com afinco para conquistar uma boa aposentadoria e não passar pelas mesmas dificuldades de sua velhice.
Casei cedo. Não tivemos outra alternativa. Tive duas meninas que receberam a mesma educação e tiveram destinos completamente distintos que não vale a pena mencionar.
Durante minha existência sempre cumpri com minhas obrigações. Não dependi de governo para nada. Paguei meus tributos com correção e jamais criei problemas.
Passei longe de uma delegacia. Nunca faltei com a verdade e ao trabalho e sai como entrei: limpo. Sem dever nada a ninguém.
Por ser cristão e por tudo que fiz em vida, estava certo do meu destino: o paraíso.
Ledo engano!
No caminho para o cemitério, sentado sobre o meu caixão, vendo as últimas imagens da minha cidade, descobri que não seria tão simples assim.
Sempre considerei Framingham velha, feia e mal conservada.
Não nasci aqui por opção, mas por imposição. E não vivi aqui por gosto, mas por necessidade.
Sem alternativa acabei sendo enterrado aos poucos nesta bosta.
É o lugar que mais têm desocupados por metro quadrado.
Ruas descuidadas cheias de imperfeições, mato crescendo pelas calçadas e lixo pelos meios-fios, cantos, canteiros e sinaleiras.
E para completar meu drama, têm uma estrada de ferro que corta o centro da cidade em pleno século 21.
Não podemos esquecer, meu bom amigo, daquela turma desprovida de educação, que não respeita sinalização e joga lixo pela janela.
E os pedestres, então, que atravessam ruas e avenidas por todos os lugares, menos sobre as faixas de segurança.
Diante desta desordem institucionalizada excomunguei os administradores públicos e os habitantes do meu lugar.
Profanei meu santo estado.
Agora, como castigo, terei que passar primeiro pelo purgatório para um estágio de purificação que vai tomar alguns anos de sacrifício e tormento.
Nasci para pagar um crime que não cometi. Morto, seguirei em castigo pela correção e integridade.
E tudo por culpa da má gestão da minha cidade e desta gente mal educada sem noção de civilidade e cidadania.
Receba, meu bom e velho amigo, um afetuoso abraço rogando ao Pai para não encontrá-lo tão cedo.
Quero deixar registrado que tenho o original comigo para qualquer dúvida.
Texto em homenagem ao cronista e escritor Lima Barreto
Que divida seria essa que eu tenho que morrer para pagar? Que mal eu fiz para nascer e sofrer tanto, sem receber nada em troca além da morte?
Estamos entregues ao mal e ao sofrimento permanente. Se Deus de fato existe, por onde ele anda, que permite tanta maldade e tanta violência contra os seus?