O barulho era inconfundível. Todos conheciam. Seguia lento pela estrada de chão batido, estreita e irregular, arrastando todos ao males da existência humana. Parecia um pedido de súplica. Rangia como os dentes de um cachorro tomado pela raiva à beira da morte. O som ecoava pela mata alertando todos os seres vivos de que o cortejo passava.
Cruzava a pequena vila de agricultores, pobre e atrasada, enterrada entre montanhas uma vez por semana, sempre no final da tarde e na mesma direção. No mesmo passo e compasso, vociferando em voz rouca contra os animais, Deus e os homens.
Dele ninguém sabia nada, mas todos conheciam e faziam as mesmas perguntas em busca das mesmas respostas. Histórias apareciam aos borbotões por toda região. Cada uma mais fantasiosa do que a outra.
Para os mais antigos a aparência não mudava. Nem o modo de se vestir. Sempre de camisa cinza de mangas longas e calça preta. Mesmo que os céus mandassem sobre aquele lugar esquecido chuvas e ventos no inverno mais intenso ou no verão mais rigoroso.
– “O desgraçado não envelhece” -, comentou uma velhinha certa vez – “lembro dele jovem e ainda solteira fazendo este mesmo caminho. Nunca se aproximou da gente ou participou de qualquer atividade na comunidade”.
Ninguém sabia de onde vinha e para onde se dirigia. Surgia e desaparecia. Sempre conduzindo aquele carro de madeira construído como os antigos, puxado por duas juntas de bois pretos que aumentava ainda mais o mistério.
Os dois primeiros chamavam-se capeta e corisco. Ambos tinham um dos olhos vazados. O da direita o olho esquerdo. O da esquerda, o olho direito.
Penitência era um lugar abafado com rios e lagos de águas escuras e solo de difícil cultivo. Produção baixa e pequenos proprietários que plantavam o suficiente para comer. Não havia criação de animais e comércio regular como nas pequenas cidades. Apenas um armazém que vendia quase tudo. Sem delegacia de polícia ou bancos, ruas pavimentadas, iluminação pública ou residencial.
O vigário da única igreja desapareceu numa noite de inverno e nunca mais foi visto. Um pseudo veterinário, que apareceu de repente e foi ficando, exercia o papel de dentista e clínico-geral.
Mulheres solteiras eram poucas e viviam protegidas pelos parentes masculinos longe dos olhos de estranhos. Demonstravam pouco apego a higiene e aos cuidados do corpo.
Não se encontravam crianças brincando pelas ruas. Grande parte dos jovens estavam trabalhando ou estudando nos grandes centros.
Eram pessoas frias e distantes. Nada receptivas aos passantes.
“Ainda vamos redimir o mundo!” Sussurrou alguém para mim no final de uma tarde chuvosa e fria ao ver a imagem distante de um homem andando lentamente ao lado de um carro de boi segurando rédeas quase indivisíveis que poderiam representar o bem e o mal.
Eram duas comandando os cavalos do apocalipse representados por quatro bois na figura de um só cavaleiro.
Numa manhã depois da Páscoa, uma chuva intensa despencou sobre o pequeno lugar. Torrencial, carregada de trovões cortando o céu de alto a baixo em todas as direções. Parecia que os anjos tinham determinado o seu fim por fim.
Logo correntes intensas foram formadas pelos caminhos. O rio encheu e transbordou invadindo casas e transformando plantações numa extensão do seu próprio corpo.
A noite caiu e ninguém dormiu. Vigilantes, muitos foram para os telhados das casas em busca de proteção e no escuro se comunicavam para não perderem o contato e a direção.
Quando a madrugada chegou e a chuva diminuiu de intensidade, um som conhecido e assustador surgiu. Agora bem próximo de todos. Parecia um grito sufocado esconjurando o mundo.
E foi passando em direção do rio mergulhado na mais profunda escuridão com aqueles lamentos estridentes das rodas e aquela voz rouca bradando contra os animais, Deus e os homens.
Alguém gritou de algum ponto de que a ponte tinha sido levada pelas águas, mas o som seguiu na mesma direção cruzando por todos. E seguiu e seguiu até desaparecer como um dia surgiu…